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Cracolândia, São Paulo: A vida é um emaranhado de nós.
Photo Credit To Clarice Sandi Madruga

Cracolândia, São Paulo: A vida é um emaranhado de nós.

Demorei para me manifestar sobre a operação da Craco. Talvez porque, tendo frequentado tanto a região nos últimos anos, sei que nada feito ali é tão simples de interpretar. Continuo aqui me questionando, mas quando leio a opinião de que o ocorrido lá foi uma “barbárie” ou “atrocidade”, vindo de pessoas que não conhecem de perto aquela realidade, fico aflita, engasgada. Vou ter que escrever textão!

Por muito tempo frequentei a Craco vendo o que acontecia ali com um olhar quase romântico. Sim. Acredite. No início realmente achei que a redução de danos feita ali de fato funcionava e que era um direito daquelas pessoas viverem daquela forma. Achava lindo o respeito que TINHAM conosco, os profissionais de jaleco branco (que funcionava praticamente como um escudo ali dentro) e principalmente com as crianças, chamadas por eles de anjos.

Não sei se foi o momento (troca de lideranças depois das disputas nos presídios no início do ano), se foi o fato de eu ter aprofundado muito mais minha interação com as pessoas devido a pesquisa que fiz como consultora do PNUD, ou se foi por ter começado a ajudar a ONG Ação Retorno, da pastora Nildes, que cuida das crianças que vivem nessa comunidade…. mas de repente a minha visão mudou. Passei a enxergar o que todos que vão lá pela primeira vez enxergam: condições desumanas, uma barbárie, uma atrocidade. só que diária, rotineira. Vi mulheres e trans serem espancadas até quase a morte sem que a polícia (sempre presente) intervisse, vi onde as execuções são feitas (o chamado canil dos vivos), vi mulheres grávidas usando crack e heroína sem que ninguém considerasse o direito do feto (tão considerado no país que proíbe o aborto, vale dizer!), soube de bebês nascendo nos hotéis e desaparecendo sem que os profissionais dos programas conseguissem entrar para prestar apoio, vi o desespero de mães, esposas, avós e filhos com fotos nas mãos a procura de seus entes queridos lá dentro. e muito muito mais.

Não vou ainda tecer nenhum comentário sobre a operação em si, pois não vi com meus olhos. Ouvi muitos relatos, completamente divergentes e TODOS enviesados, ou por ideologias dogmáticas ou por interesses pessoais e políticos.

As cenas que estão rodando são sim chocantes, mas apenas para quem não vê o dia a dia lá dentro. Tenho certeza que se pudessem filmar a realidade diária, a desaprovação pública seria a mesma.

Tendo visto outras operações, achei mesmo admirável que não tenham havido mortos (tendo em vista q um dos traficantes presos era um sniper ex militar, e q os 2 corpos encontrados nos hotéis, que a mídia omite, já viraram boatos de que 4 usuários foram mortos) e apenas 1 ferido (machucou na corrida da invasão).

Sinceramente, foi estratégico. Já vi mais gente ferida (inclusive das equipes de saúde) em atritos irrelevantes e inúteis lá dentro.

Algo PRECISAVA ser feito ali. Ações sociais, de redução de danos, de saúde eram feitas diariamente por equipes incríveis lá dentro. Nunca nenhuma população vulnerável recebeu tanta atenção. Nenhuma família de retirantes que fica na escada da Sé jamais sonhou em ter disponíveis médicos, enfermeiros, assistentes sociais, banho, comida e roupas como os usuários da Craco tinham. Mas estávamos enxugando gelo. Algo a mais precisava ser feito ali. Tento e não consigo ainda pensar em outra forma de desmantelar aquele cenário que já era, sem dúvida, tão desumano e bárbaro.

Se a operação vai ser efetiva? Só o tempo dirá. E isso vai depender de darem seguimento e oferecerem assistência social, acolhimento e/ou tratamento aos que dali fugiram e se aglomeram em pequenos grupos pulverizados na cidade. Essa ação é vital para que possamos começar a considerar uma solução de fato.

Mas mesmo que isso não aconteça, que seja o que todos tanto repetem, uma dissipação que só vai levar à relocação da Craco, estou propensa a achar que valeu. Pelo menos esse sistema perverso do PCC desarticulou e enfraqueceu. Pelo menos cerca de 1/3 dos usuários farão um break, e quem sabe até iniciarão seu processo de reinserção social. Pelo menos aquelas crianças verão que a carreira do PCC é duvidosa e pode “dar ruim” eventualmente, e que um futuro fora de lá é possível.

Professora da pós-graduação em psiquiatria e psicologia médica da Unifesp. Pesquisadora na área de epidemiologia do uso de drogas e consultora do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas para uma pesquisa na Cracolândia.

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