Você vai ter a oportunidade de conhecer Leila Mostaço-Guidolin, atleta de Ski Cross Country e campeã brasileira da modalidade na última Temporada Austral. Doutorando em Engenharia Biomédica, Leila conta sobre as dificuldades que ela enfrenta com a falta de recursos disponíveis para conseguir competir e conquistar novos títulos.
TI – Antes de ser atleta de cross-country ski e biatleta, além das competições de inverno, você praticava futsal, vôlei, basquete, natação e triatlon. Como surgiu essa fome pelo esporte?
LM – Desde de pequeninha eu sempre fui apaixonada por esportes. É algo que sempre esteve comigo. Quando ainda estava no jardim de infância ou no “prézinho”, lembro claramente de assistir as aulas de educação física dos “grandes” (pessoal da 7a-8a série eu acho) e ficar maravilhada com os jogos de basquete e vôlei. Desde aquela época o esporte sempre causou um efeito mágico em mim. Esportes sempre fizeram parte da minha vida de uma maneira muito especial. Quando eu era criança, achei que quando crescesse, teria que parar de praticar natação (eu adorava treinar e competir!) para “estudar bastante”. Veio o colegial, o vestibular, a faculdade e mesmo assim consegui conciliar tudo. Quando entrei na faculdade, lembro ter pensado “é melhor eu aproveitar bem, pois depois de formada tenho certeza que as coisas vão complicar. Terei que trabalhar bastante e vou ter que dizer adeus às competições”. Pois é…aqui estou eu, com 30 anos e ainda dividindo o meu tempo feito louca entre as crescentes responsabilidades e os meus treinos. E parece que as coisas não vão mudar tão cedo…rs
TI – Leila, você deverá defender o atual título de campeã brasileira de Esqui Cross Country em Ushuaia, na Argentina. Como se sente? Está preparada para mais este desafio?
LM – O Campeonato Brasileiro de Cross Country foi realizado nos dias 9, 10 e 11 de Agosto, em Ushuaia. Infelizmente, não tive condições financeiras para me deslocar até lá para competir. Como estou morando atualmente no Canadá, essa viagem acaba sendo bastante pesada para o meu orçamento. Até lancei uma campanha na internet para tentar conseguir recursos para esta viagem, mas a mesma infelizmente não deu certo. Agora, estou tentando ver se consigo ir ao menos participar do Campeonato Brasileiro e Sulamericano de Biathlon em Bariloche, nos dias 7 e 8 de setembro… De qualquer forma, estava super preparada para tentar o bicampeonato no Cross Country. Agora, se os campeonatos de Biathlon, na América do Sul, também não dêem certo, o foco todo estará na temporada aqui da América do Norte. Começa em novembro e vai até março…Devo participar de algumas provas da FIS (Federação Internacional de Esqui), provas nacionais e provinciais aqui no Canada.
TI – Como você avalia o nível de dificuldade desta competição e das outras atletas que irão disputar a prova?
LM – O campeonato nacional vem crescendo bastante ao longo dos últimos anos. É claro, não podemos comparar o nível das competições disputadas na América do Sul, com as competições disputadas na Europa ou na América do Norte. O Brasil vem evoluindo muito nos últimos anos, já conseguimos deixar para trás as últimas colocações em diversas provas; porém a diferença ainda é bastante notável. Os países com mais tradição no esqui cross country possuem atletas que treinam desde muito jovens. Há também as condições climáticas favoráveis à prática da modalidade, enquanto que nós, brasileiros, começamos bem mais tarde. Aí não tem jeito: nós temos que nos dedicar MUITO para poder superar as deficiências técnicas e assim disputar provas de nível internacional.
Quanto aos atletas da equipe brasileira, além dos atletas “veteranos”, há alguns atletas mais jovens que estão aparecendo no cenário nacional, fazendo com que a modalidade cresça. O Brasil, embora não tenha neve, é o país da América do Sul com o maior número de atletas (no cross country) federados, junto à FIS. O nível dos atletas brasileiros é bem variado. Temos dois (um no feminino e outro no masculino) que já representaram o Brasil nos Jogos Olímpicos de Inverno e vão nos representar novamente agora em 2014, em Sochi. Há outros que seguem evoluindo a cada temporada, conciliando carreiras e treinamentos; e por fim, há 4 jovens (de 17-20 anos) que estão treinando e devem começar a disputar provas internacionais em breve. Este ano, no campeonato brasileiro, nós tivemos a presença de 8 atletas, porém, apenas uma no feminino (que na verdade, parece que está focando mais no biathlon). As demais, assim como eu, não puderam participar das provas deste ano (devido aos mais variados motivos). Espero que a edição de 2014 volte a ser disputada com a presença de todos os atletas presentes.
TI – Como não há no Brasil, lugares em condições favoráveis para a prática de esportes de inverno, há a necessidade do deslocamento para países com neve. Como você faz com as despesas? Os atletas brasileiros da categoria encontram muita resistência para conseguir um patrocinador?
LM – Atualmente, eu moro no Canadá. Sendo assim, posso dizer que as minhas condições de treinos são muito próximas do ideal. Há mais uma atleta que reside aqui também, porém os demais moram no Brasil. Alguns recebem recursos da Confederação Brasileira de Desportos na Neve (CBDN) para custear estadias na Europa ou nos Estados Unidos, podendo treinar e competir. Os dois representantes olímpicos também possuem um auxílio extra do Comitê Olímpico Internacional, através do programa “Solidariedade Olímpica Internacional” (SOI). A maioria dos atletas nacionais também conta recursos obtidos através do programa Bolsa Atleta do Governo Federal. Essas são as possibilidades que estão de certa forma “disponíveis” para nós. Porém, há exceções: no meu caso, por exemplo, estou custeando toda a minha preparação. Espero que no futuro possa ter acesso à algum destes recursos, pois o custo é bastante elevado, mesmo que para manter o “mínimo”, morando num país onde já há neve, etc. Eu iniciei uma busca por patrocínios recentemente, para tentar participar do Campeonato Brasileiro de Cross Country. O que eu posso dizer é que a obtenção dos mesmos não é simples. Espero que com uma maior divulgação das modalidades de inverno, as empresas comecem a se abrir mais para nós. Desde as Olímpiadas de Vancouver em 2010, o interesse do brasileiro nos esportes de inverno vem crescendo bastante. Eu acredito que aos pouquinhos deveremos conseguir um espaço maior na mídia e consequentemente atrair mais investimento.
TI – Considerando o treinador, alimentação, equipamentos, passagens aéreas e hospedagem, qual é o custo médio para a preparação de um atleta brasileiro em condições adequadas para competir lá fora?
LM – Isso é bem variável, pois depende de quantas provas você planeja participar por temporada, locais, etc. Mas por alto, baseado nas contas que eu fiz para esta temporada de 2013/2014, o custo total ficaria em torno de US$ 22.500. Este valor é baseado no meu caso, que já estou morando aqui no Hemisfério Norte e posso tentar focar mais nas provas do EUA e Canada ( ou seja, o custo com passagens cai consideravelmente quando comparado com o caso de um atleta que precisa viajar do Brasil até aqui ou até a Europa).
O valor aumenta, caso você acrescente aí provas na Europa, estadia por lá por uns 2-3 meses (o calendário é bem cheio de competições; logo, é possível disputar provas todos os finais de semana, caso seja de interesse do atleta), alimentação, transporte terrestre (na maioria das vezes, os locais de competição são afastados dos grandes centros, sendo assim, é necessário pagar um transporte extra – vans chamadas de “shuttles” – ou alugar um carro, pois não podemos esquecer que temos MUITA bagagem…esquis, equipamento para preparar/encerar os mesmos, malas, etc.
Como eu preciso cobrir todas as despesas relacionadas com técnicos, equipamentos, viagens e hospedagens, acabo ajustando o número de provas que disputo com os recursos que tenho para aquela temporada. O ideal seria poder participar de provas na Europa também, mas o custo com transporte fica muito oneroso. Sendo assim, no momento, meus recursos são bem limitados e como não posso “cortar” o investimento em treinos/equipamento, acabo escolhendo provas mais próximas daqui (o que não necessariamente significa que seja a melhor opção).
TI – Afinal, como integrante da seleção brasileira, você recebe algum subsídio para treinar?
LM – Não. Infelizmente, o Campeonato Brasileiro de Cross Country do ano passado não foi válido para podermos pleitear recursos do programa Bolsa Atleta. E a CBDN não pôde atender ao meu pedido de auxílio – que no caso, era para a participação no Campeonato nacional deste ano. Tenho de arcar com todas as despesas relacionadas com viagens, treinador, equipamentos, etc.
TI – Você acredita que por meio da revolução digital e campanhas de crowndfunding que se espalham nas redes sociais, os atletas podem conseguir mais recursos?
LM – A acredito que sim. O mundo está diferente, hoje em dia temos a capacidade de nos comunicar com um grande número de pessoas de maneira mais fácil e eficiente. Há diversas plataformas deste tipo espalhadas por aí, e pelo que tenho acompanhado há muitos atletas (e até mesmo artistas, escritores, inventores, etc) que estão conseguindo transpor dificuldades relacionadas à falta de investimento via crowdfunding.
TI – Em um blog, você disse que é apaixonada por livros e se considera uma Nerd. Como é a Leila Nerd e como é a Leila esquiadora e biatleta?
LM – Elas são até que bem parecidas…risos. Sempre prezo pela excelência. Quando decido fazer algo, quero fazer bem feito. Eu quero dar o meu máximo e chegar o mais longe que puder. Sem esforço, sem dedicação e sem abrir mão de algumas coisas, nós não atingimos os nossos objetivos. Eu sempre busco me dedicar ao máximo para aprender tudo o que me é oferecido. Como uma boa nerd, amo estudar. Eu adoro aprender coisas. Desde criança sempre quis “saber tudo de tudo”; estou terminando o doutorado em Engenharia Biomédica. Sou formada em Física Médica e posso dizer que já sei bastante coisas (risos), mas ainda falta muito. E é aí que a Leila nerd se “mistura” com a Leila atleta. Eu estudado por conta algumas coisas sobre fisiologia do exercício, por exemplo; depois, eu sempre procuro conversar com o meu treinador sobre o porquê devemos fazer certos exercícios desta forma, qual é a bioquímica que está por trás de cada suplemento que devo tomar, etc, etc. Enfim…aprender e entender os porquês fazem parte da minha vida esportiva também. Além de nerd, a Leila esquiadora/biatleta é muito esforçada. Eu estou sempre buscando melhorar ao máximo tudo o que eu posso com relação à técnica, preparo físico, etc. Eu quero representar o Brasil nas Olímpiadas de 2018, e quem sabe, garantir um resultado nunca antes atingido?
TI – Quem é GregSkier?
LM – O GregSkier é o meu mascote! Tudo começou quando, em 2012, viajei até Craftsbury (USA) para uma avaliação informal antes de participar do Campeonato Brasileiro de Cross Country. Durante essa viagem, comprei um “monstrinho” de brinquedo que chamei de Greg. De lá para cá, comecei a brincar que ele era o meu mascote de viagens, era o Greg skier. Os meus amigos começaram a achar engraçado até que eu resolvi desenhar ele (desenhar e pintar é outro hobby que tenho…). Para tentar conseguir juntar um dinheiro para cobrir uma pequena parte das minhas despesas, acabei tendo a ideia de criar uma loja virtual, para vender camisetas, canecas, etc com o GregSkier estampado nesses produtos. Assim, parte do valor de cada produto da “linha” GregSkier será arrecadado para cobrir alguns gastos ao longo das temporadas. A loja ainda não está no ar, mas pretendo deixá-la disponível até o final do ano. Fiquem de olho no meu site!
TI – Qual o tipo de literatura que você mais gosta? Algum autor preferido?
LM – Eu gosto muito de suspenses; porém, costumo ler de tudo um pouco. Desde ficção, biografias, livros técnicos, história… o que aparecer, eu leio. Eu não posso dizer que tenho um autor preferido, mas se eu tivesse que dar um nome, seria Stephen King. Um dos livros mais emocionantes que eu já li é dele (The Green Mile)…
TI – Em que cidade você mora no Canadá? Como é a sua rotina de treinamento?
LM – Eu moro em Winnipeg. A rotina varia um pouco dependendo do período do ano (pré-temporada, temporada, recuperação, base, etc). Por exemplo, durante o período de base e pré-temporada, em geral, eu tenho treinos em dois períodos por dia, 6x/semana. O primeiro é das 6am até umas 8am, geralmente faço a parte de musculação e um cardio mais pesado; à tarde, o horário acaba sendo bem variável, pois dependendo do dia, eu tenho treinos técnicos com o rollerski (antes da neve chegar), treinos de resistência (ou “endurance”, que são corridas com subidas, exercícios mesclados em forma de circuito… esses treinos são geralmente os mais difíceis da semana), treinos específicos para velocidade/explosão, bike…em um dos dias do final de semana, costumo ter treinos mais longos, geralmente sendo algo em torno de 2-3h com rollerski e uma corrida leve no outro período. Sempre que possível eu gosto de encaixar algumas sessões de yoga específica para esportes. Esse “tipo” de yoga é super interessante e dá muito resultado. Ela ajuda com a recuperação entre uma sessão de treino e outra, a mesma se torna mais rápida e sem falar que você acaba desenvolvendo uma consciência corporal muito boa, que acaba sendo muito útil quando você treina e aprimora diferentes técnicas específicas do esporte. Durante a temporada, a maior parte dos treinos são na neve mesmo, porém tenho mais dias de recuperação ou treinos leves, pois há competições em quase todos os finais de semana. Além disso, entre um treino e outro, um descanso e outro, acabo fazendo coisas relacionadas ao meu doutorado.
TI – Cuida bem da sua alimentação? Sabe cozinhar? Se sim. O que gosta de preparar? Se não, o que gosta de comer e beber?
LM – Sem dúvida. O que o meu treinador sempre diz – e com razão – é que grande parte do nosso sucesso não vem apenas daquelas horinhas que nós passamos dentro da academia ou da pista treinando. E sim das horas que estamos fora de lá. A alimentação e o descanso são peças fundamentais no desempenho de qualquer atleta. Eu sigo uma dieta desenvolvida especificamente para mim, que está alinhada com todo o planejamento dos treinos. Essa dieta muda conforme a minha fase de treinos… tem época que preciso ingerir mais proteínas, em outras um pouco mais de carboidratos e por aí vai. Além de toda a suplementação que também me acompanha ao longo do ano inteiro. Logo que me mudei da casa dos meus pais, para fazer faculdade, confesso que era ruim na cozinha. Mas com o tempo (e necessidade! risos) as coisas melhoraram. Gosto muito de peixes, frutos do mar e saladas. Não sou muito fã de carne vermelha. Pães, queijos e chocolates são as minhas tentações. Com relação à bebidas, ADORO água. Gosto de sucos também, mas água pura e gelada é a minha bebida favorita. Eu diria que a minha “especialidade” é um salmão com molho de alcaparras e mostarda, com brócolis, batatas e cenouras ao vapor, com um pouquinho de alho.
TI – Quem é o seu treinador. O que a experiência dele tem mais contribuído com o seu treinamento?
LM – Eu conto com dois treinadores: um para a parte técnica e outro para a preparação física. O meu técnico de esqui é o Brent Bottomley. Em 2011 eu me juntei ao time de esqui dele, chamado Team Windchill. O Brent tem mais de 30 anos de experiência preparando atletas de alta performance, além de ter sido membro da equipe canadense em várias etapas da Copa do Mundo de esqui nas décadas de 80 e 90. O Team Windchill conta com alguns dos melhores esquiadores da província e sem dúvida isso ajuda muito, pois além de todos serem super receptivos, eu acabo tendo vários “modelos” para seguir… eles me passam dicas e vibram a cada conquista. O time é composto por 12 esquiadores, e ter o Brent como técnico é um grande privilégio; toda a experiência dele faz uma grande diferença. Quando eu conheci o Brent e a sua equipe no final de 2011, eu tinha acabado de ter o meu primeiro contato com a técnica skate; eu mal conseguia acompanhar o grupo e menos ainda fazer todos os “exercícios” propostos (curvas em descidas, subidas “sprint”, etc). Em 2012, eu já estava disputando provas FIS em locais conhecidos por terem pistas bem difícieis, como a de Canmore por exemplo, que foi sede das Olímpiadas de 1988. De acordo com o técnico da equipe dos EUA, que eu conheci em West Yellowstone, eu estou tendo uma evolução incrível. E sem dúvida, o Brent tem um grande mérito nisso.
Além dos treinos técnicos, eu conto também com o Jeff Fisher para desenvolver todo o meu programa de condicionamento físico. No final de 2011 (um pouco antes de ser apresentada ao Brent), eu comecei a trabalhar com o Jeff na Elite Performance, e posso dizer que eu não poderia ter caído em mãos melhores. O Jeff foi – durante sete anos – o treinador chefe e técnico de força e condicionamento do Winnipeg Blue Bomber (time de futebol americano da CFL); ele foi também durante três anos, diretor dos “camps” de avaliaçao de atletas da CFL (Canadian Football League) e, atuou por um ano como diretor de avaliações físicas canadenses da NFL (National Football League). O Jeff fundou a Elite Performance e abriu as portas para atletas de elite de todo o Canada. Ele é conhecido tanto aqui quanto nos EUA como sendo um “guru” de condicionamento físico e reabilitação após lesões. Eu sempre fui atleta, sempre treinei bastante durante muito anos, mas eu posso garantir que eu nunca tinha visto/experimentado um programa de treinamento tão intenso e tão bem planejado. A Leila de 2013 já é absurdamente diferente da Leila de 2011. E como ele me disse uma vez: “você ainda não sabe do que você é capaz. Eu vou fazer você chegar num nível nunca atingido antes.”. Até o momento, ele está mais do que cumprindo com a palavra…risos.
Segundo o Brent, em média um atleta leva uns 3 anos para estar confortável com todas as técnicas, esquiando de maneira eficiente. Segundo o Jeff, ele iniciou a minha preparação específica apenas este ano; para ele, o primeiro ano, foi apenas uma base para que eu fosse capaz de suportar a carga de treino específica que eu terei (e já estou tendo!) até atingir os meus objetivos. Logo, se após apenas uma temporada trabalhando com eles eu já consegui esses resultados, eu não vejo a hora da próxima temporada começar! E da seguinte…e assim por diante.
TI – Na sua opinião qual foi a sua maior vitória no esporte?
LM – Ela ainda está por vir! risos. Eu tive várias conquistas na natação que foram muito especiais. Porém, só de estar competindo pelo Brasil, numa modalidade em que não temos tradição nenhuma já é uma honra. Já é uma vitória. Ver a nossa bandeira hasteada nesses eventos é sem dúvida emocionante. Ver que já jovens se interessando pelos esportes de neve é muito legal e dá uma alegria muito grande saber que, de alguma forma, fazemos parte de tudo isso. Esta experiência está sendo incrível…sei que tudo mal começou, mas o sacrifício já está valendo à pena.
TI – Qual o título você considera mais importante para a sua carreira?
LM – Sem dúvida a conquista do campeonato brasileiro em 2012 foi especial, afinal essa foi a minha primeira corrida oficial e foi a porta de entrada para que eu pudesse iniciar essa jornada. A minha primeira prova FIS também foi especial. Não conquistei nenhum título, nem medalha por lá. Mas o gostinho de saber que por uns 2-3min eu já teria atingido o índice* para ir ao Campeonato Mundial, numa primeira prova FIS foi indescritível!
*esse índice depende da média das 5 melhores provas disputadas durante a temporada. Caso o atleta não tenha participado de no mínimo 5 eventos, uma penalidade é adicionada (de 10 a 40% dependendo do número de provas). Como esta era apenas a minha 1a corrida, quando esta penalidade (de 40%) fosse adicionada, eu não teria o índice. Para que eu pudesse ter me classificado para o mundial, eu deveria manter uma média de no máximo 350 pontos. Mas enfim, a previsão de vários colegas de equipe mais experientes era de que eu conquistasse algo entre 600-800 pontos no início. Eu obtive 438 pontos. Caso tivesse terminado a prova 3 minutos mais rápido, eu teria obtido algo em torno de 320 pontos. Vale lembrar que quanto menos pontos, melhor. O índice olímpico B, por exemplo, é 300 pontos. O índice A são 100 pontos. Países “em desenvolvimento” (sem tradição nos esportes de neve, como o Brasil, Argentina, Chile, alguns da Ásia, África e Oriente Médio), trabalham com o índice B.
TI – Você poderia explicar para nossos leitores, como são os critérios de classificação e pontuação da FIS?
LM – Uma fórmula bem complicadinha é usada para o cálculo desses pontos. Simplificando, o tempo dos vencedores e o “nível” dos concorrentes é levado em conta. Por exemplo, às vezes, um atleta consegue pontos FIS mais baixos quando compete contra o campeão olímpico e chega em último, do que quando fica entre os 3 primeiros numa prova menor, regional sem tantos adversários “de peso”. Por isso que participar em provas na Europa é importante. Os maiores nomes do esqui cross country estão por lá; o nível das provas é bem mais alto, logo você consegue ver onde você está com relação aos melhores atletas do mundo.
Cada prova possui uma “penalidade”dependendo do nível da mesma. Por exemplo, nas Olimpíadas o campeão marca 0 pontos (que é o melhor possível!) pois não há penalidade. Em provas regionais, há casos onde o campeão marcará 100, 150, 170 pontos. Ou seja, mesmo sendo campeão, os pontos mostram que tal competição teve um nível “inferior” aos jogos olímpicos. Em provas medianas (como as dos EUA, por exemplo), os campeões marcam ~20-50 pontos. Além disso, fatores como o tipo de prova também influencia. No caso de largada “em massa”(onde todos saem juntos), há uma correção de 1.5 (ou seja, a pontuação será 1.5 mais alta do que caso a mesma prova fosse disputada tendo largada “intervalada” – onde cada atleta larga individualmente, a cada 30s); provas de sprint também possuem fatores de correções diferentes das provas de distância, etc. É uma confusão, mas aos poucos a gente se acostuma e começa até a fazer as contas usando a calculadora do celular, logo que pegamos a mochila, após a prova! risos.
TI – Qual foi a prova mais difícil que você competiu?
LM – Uma prova que disputei em Sovereign Lake (BC, Canada). Eu estava viajando para competir há algumas semanas (passando em casa por 1 dia no máximo, reorganizando as malas e partindo para o aeroporto novamente), quando infelizmente uma gripe forte me pegou. Viajei para lá 5 dias antes da prova, mas tudo o que eu consegui fazer durante 3 dias foi dormir e tentar me recuperar para competir no final de semana. Melhorei um pouco, consegui fazer um reconhecimento da pista, mas no dia da prova eu fui surpreendida com o clima. Os termômetros indicavam -16oC e alta umidade. As pistas ficam numa altitude de mais de 1600m, o que já acaba causando uma sensação térmica bem diferente dos -16oC de Winnipeg (que está a apenas 240m do nível do mar e tem um clima bem seco). Devido à minha falta de experiência e também ao fato de não estar 100% por causa da gripe, acabei me vestindo com menos “camadas” de roupas do que deveria. Resultado: literalmente quase congelei durante a corrida. Era uma prova de 10km, mas após a 1a volta (de 5km) eu já estava me sentindo exausta e com muito frio; porém, consegui dar um jeito de terminar. Foi dolorido, o resultado foi ruim, mas a lição foi aprendida. Este ano eu pretendo ir competir lá novamente e apagar esse “trauma”..risos.
TI – De todos os países que já competiu, existe um em particular que mais gosta de ir? Por que?
LM – Eu ainda não conheci muitos países. Eu estive apenas nos EUA, Canada e Argentina. As provas dos EUA tinham uma estrutura bem maior do que as do Canada e da Argentina. Foram etapas do US Super Tour, onde muitos atletas americanos buscam vagas nas equipes nacionais que vão disputar os mundiais durante a temporada. Eu achei todo o ambiente e a organização muito legais; mesmo eu estando por lá “sozinha”, sempre tinha alguém oferecendo para me ajudar com os esquis, para ficar nas tendas aquecidas (sim! Não podemos esquecer que as temperaturas são sempre baixas e nos mantermos aquecidos antes/depois das provas sempre acaba sendo um desafio à parte…risos). As provas aqui do Canada foram legais também; a vantagem para mim foi que as viagens foram mais curtas e eu acabei tendo a oportunidade de conhecer lugares maravilhosos. Pistas muito bem mantidas, paisagens muito interessantes, além de tudo muito bem organizado. As provas na Argentina tiveram o seu charme. Você se sente quase que competindo “em casa”. O pessoal lá sempre é muito amigável, porém a organização às vezes deixa um pouquinho à desejar. É meio desleal comparar a estrutura de países como os EUA, porém o pessoal lá na Argentina se esforça bastante para garantir que tudo saia da melhor maneira possível. E isso por si só já é muito valioso. Em resumo: cada desses locais tem as suas vantagens e as suas desvantagens, por isso fica difícil escolher um. E eu tenho certeza que, quanto mais países eu visitar, mais difícil será a escolha.
TI – Você também pratica rollerskis. Conte-nos um pouco sobre este esporte na sua vida.
LM – O rollerski é o que usamos para treinar quando ainda não há neve. Eles são uma espécie de esqui com rodinhas. Lembra um pouco o patins inline, mas eles são um pouco mais lentos e pesados (além de ter o formato diferente). Nós usamos as mesmas botas e bastões que usamos durante o inverno. O único ajuste feito é que precisamos trocar a ponta de metal dos bastões, para que os mesmos não “escorreguem” no asfalto. Agora no outono, os treinos com rollerskis serão intensificados, já servindo de base para quando a neve chegar. Eles são excelentes para treinar quase todas as técnicas de subida, descida, curvas, plano. Por aqui, a gente costuma treinar em ciclovias e parques, onde o asfalto é de boa qualidade, sem muitos buracos ou pedrinhas (que podem causar tombos bem feios!), sem muito trânsito e com uma boa variação de terreno. O rollerski é perfeito para treinar aí no Brasil, por exemplo. A transição do rollerski para o esqui na neve costuma ser bem tranquila; se a pessoa domina bem o rollerski, não deverá ter grandes problemas na neve. É claro que um ajuste ou outro sempre é necessário, mas é possível sim treinar o esqui cross country num país tropical! Inclusive, há provas oficiais disputas usando roller skis. Elas são bem populares durante o verão europeu.
TI – Nas competições, vocês fazem muitos amigos. Como é participar de um campeonato e poder contar com eles? Vocês gostam de sair para comemorar?
LM – Nós conhecemos sim, muita gente. Nas provas que eu participei, o fato de ser uma brasileira esquiando sempre chama muito a atenção. O pessoal sempre acaba vindo perguntar como é que a gente consegue chegar nesse nível, uma vez que o Brasil não tem neve, como que eu comecei a esquiar, etc. Até os oficiais, organizadores e técnicos de outras equipes acabam ficando curiosos e até o momento, por todos os lugares que eu passei as pessoas sempre foram muito amáveis e prestativas. Eu até cheguei a ter os esquis preparados e encerados pelo pessoal da equipe dos EUA…risos. Por enquanto, tenho ido competir mais sozinha. A maioria dos outros brasileiros, acabam focando em provas da Europa, enquanto eu ainda estou um pouco “isolada” por aqui na América do Norte. No caso das provas regionais é diferente, pois acabo indo com a minha equipe daqui de Winnipeg, e aí sim a gente acaba tendo um pouco mais de eventos sociais (almoços/jantares, treinos para reconhecimento de pista, etc). As comemorações em geral são complicadas, porque todo mundo está sempre doido para voltar para casa, cansados…risos.
TI – Você já é formada pela USP como doutora em Engenharia Biomédica. Como faz para conciliar o esporte e a carreira?
LM – Ainda não sou doutora. Espero virar doutora ano que vem. Não tem muito segredo…eu diria que quando você quer algo, você dá um jeito para fazer as coisas que você considera importante. A chave é sem dúvida, dedicação e uma boa dose de disciplina. Os meus dias são bem cheios, os meus horários são super apertados, mas dá tempo para tudo. Sem dúvida, estar na área de pesquisa ajuda muito, pois tenho uma grande flexibilidade de horários. Eu posso me dar ao luxo de trabalhar bastante num certo período e depois pegar mais leve, balanceando o trabalho com os treinos. Mas, os meus dias começam as 5am e vão até umas 23pm.
TI – Apesar da responsabilidade com os títulos e conquistas durante as últimas três décadas, ainda sobra tempo para namorar?
LM – Eu sou casada há 6 anos! risos. A minha vida sempre foi uma confusão, cheia de atividades… e é por isso que me considero muito sortuda de ter encontrado alguém que me entenda e me apoie sempre. É ótimo ter alguém para dividir cada momento…seja de conquista, seja de frustração.
TI – Como você descreve os momentos que antecedem a largada?
LM – Quando a gente vai para a área restrita, o meu foco fica em me manter aquecida, ajustar os bastões nas mãos, e rever rapidamente na minha cabeça alguns pontos chaves da pista e pronto! Está dada a largada. Daí para frente é só se concentrar em dar o máximo, quilometro a quilometro.
TI – Qual é o seu maior desafio no esporte?
LM – Chegar às Olimpíadas é o meu maior objetivo. Fazer parte de uma seleção brasileira sempre foi o meu sonho. Eu fui nadadora por mais de 20 anos e sempre quis vestir as cores do Brasil lá fora. Agora que este objetivo foi alcançado, quero representar o nosso País da melhor forma possível. Há vários passos a serem dados antes, mas estou evoluindo e se tudo der certo, irei alcançar mais este objetivo.
Outro desafio que eu tenho, é o de “salvar o mundo do sedentarismo”. Eu sempre tento influenciar as pessoas ao meu redor a praticar alguma atividade física. Não precisa ser competindo… eu tenho um grande prazer quando consigo aos pouquinhos ir mudando a rotina das pessoas, fazendo com que elas integrem alguma atividade física à rotina delas, seja uma caminhada, seja natação, bicicleta, academia… acho muito gratificante quando alguém que era sedentário começa a praticar algum esporte e depois de um tempo, me procura para agradecer por eu ter “enchido a paciência” e convencido a adquirir um novo hábito. Nós fomos feitos para nos mover, correr, andar, pular… na minha opinião, o movimento é algo espetacular e nós devemos fazer uso dele “sem” moderação…risos. Eu tenho alguns projetos futuros de eventualmente trabalhar mais próximo ao treinamento de pessoas, não necessariamente atletas e sim indivíduos buscando uma melhora na qualidade de vida. A atividade física é mágica e mostrar isso às pessoas é sem dúvida um desafio que eu sempre tive e vou continuar tendo.