Nota do Editor
- Esta reportagem revela uma infância sitiada por algoritmos e jogos digitais que transformam curiosidade em vício. Mais que uma denúncia, é um chamado à consciência coletiva sobre o preço da infância que estamos deixando escapar.
A infância no Brasil já não cabe no quintal nem no caderno escolar. Foi rifada ao scroll, dobrada no retângulo luminoso das telas, treinada para o impulso e para a recompensa rápida. O que deveria ser silêncio de aprendizado virou ruído invisível de notificações incessantes. O país que já tratou o livro como janela para o mundo hoje empurra suas crianças para o vício do algoritmo e seus velhos para o esquecimento.
Os números confirmam: segundo a TIC Kids Online 2023, mais de 93% das crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos usam a internet todos os dias, e em média passam 4h por dia conectados fora do horário escolar. O tempo que antes era de jogo de rua, conversa de família ou leitura, agora se dissolve em rolagens infinitas.
No meio dessa encruzilhada cultural está Ryoki Inoue: autor de mais de 1.283 livros, reconhecido pelo Guinness como o escritor mais prolífico do mundo. Preencheu a vida com disciplina diária diante da página em branco. Hoje, invisível num Brasil distraído, é metáfora de um país que prefere deslizar telas a virar páginas.
O cassino no bolso: o “Tigrinho”
Entre os fenômenos mais cruéis dessa economia da atenção estão os jogos de azar digitais, como o famigerado “Tigrinho”. A Polícia Federal investiga plataformas que movimentaram bilhões de reais em apostas ilegais, muitas delas hospedadas fora do Brasil, sem fiscalização.
Não é entretenimento: é engenharia comportamental. O mecanismo do “slot” com rodadas rápidas, luzes, sons de vitória, ativa os mesmos circuitos cerebrais que o crack ou a cocaína. Estudos da Universidade de Cambridge já mostraram que jogos de azar online têm alto potencial de gerar vício em adolescentes, porque exploram reforços intermitentes e ilusórios.
Cada giro da roleta digital é um golpe na esperança. Crianças, jovens e até aposentados são atraídos pela promessa de transformar centavos em fortuna. Mas, na prática, perdem não apenas dinheiro, mas noções de valor, esforço e paciência. O vício deixa de ser exceção e se torna rotina.
Influenciadores e a pedagogia da ostentação
O cenário é agravado por influenciadores que vendem estilo de vida como se fosse manual de existência. Um levantamento do Datafolha em 2024 mostrou que 72% dos jovens entre 16 e 24 anos dizem se sentir pressionados a exibir conquistas nas redes sociais.
Figuras como Hytalo Santos transformam carros de luxo, mansões alugadas e viagens em conteúdo aspiracional. O efeito é devastador: adolescentes aprendem a medir a própria vida pelo reflexo das vitrines digitais. O sucesso vira espetáculo, e o fracasso, invisível.
O sociólogo francês Gilles Lipovetsky já alertava: vivemos na era do “hiperconsumo do imaginário”, em que a comparação é constante e a ostentação, regra. No Brasil, essa pedagogia da ostentação encontra terreno fértil em comunidades vulneráveis, onde o sonho de ascensão social é sequestrado pela promessa de atalhos fáceis.
Cultura da pressa, política da distração
O tempo contínuo foi picotado em notificações. Pesquisas da Microsoft já apontavam que a capacidade média de atenção caiu de 12 segundos em 2000 para apenas 8 segundos em 2022, menor que a de um peixe dourado, segundo a mesma métrica.
Isso não afeta só a educação, mas a própria democracia. Segundo o Reuters Institute, mais de 60% dos brasileiros consomem notícias pelas redes sociais, onde predominam frases de efeito, cortes rápidos e conteúdos descontextualizados. A política se adapta: programas de governo viram memes, debates se resumem a slogans, e a performance substitui o conteúdo.
A pressa se torna forma de poder: quem captura mais segundos de atenção governa narrativas. O efeito é corrosivo: quando a democracia vira espetáculo de curtidas, o espaço público se esvazia de sentido.
Entre infância rifada e velhice esquecida
Se as crianças são rifadas ao algoritmo, os idosos são rifados ao esquecimento. Segundo o IBGE, um em cada três idosos brasileiros vive em situação de vulnerabilidade socioeconômica. A solidão é outro dado alarmante: estudo da Fiocruz revelou que 40% dos brasileiros acima de 60 anos sentem que não têm com quem contar regularmente.
Ryoki Inoue é a síntese desse processo. Um escritor que fez da disciplina sua vida, que transformou silêncio em criação e tempo em legado. Hoje, acamado, depende da solidariedade para não desaparecer no ruído das distrações. Ele representa o oposto da lógica atual: a paciência de quem construiu mais de mil narrativas contra a pressa de uma sociedade que mal sustenta um parágrafo.
Gesto contra o algoritmo
O enfrentamento não é apenas tecnológico, mas cultural e político. A ONU já declarou o acesso seguro à internet um direito humano, mas exige regulamentação para proteger crianças. Países como França e Reino Unido avançaram: ambos já restringem publicidade de jogos de azar digitais e obrigam plataformas a limitar conteúdos nocivos para menores.
No Brasil, os debates ainda engatinham. O Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como “PL das Fake News”, foi engavetado e desidratado. Enquanto isso, empresas bilionárias seguem ditando o tempo, a memória e o desejo de milhões de brasileiros.
Agora, a pauta da “adultização” também chega ao Congresso. O Projeto de Lei 2.628/2022, em discussão na Câmara, tenta regulamentar práticas abusivas que expõem crianças a conteúdos e estímulos projetados para adultos, de publicidade disfarçada ao acesso precoce a jogos e apostas digitais. A tramitação avança lentamente, como se o tempo político não fosse o mesmo da infância que se perde em cada notificação. Entre plenário e comissão, discute-se o óbvio: que a criança tem direito de permanecer criança.
Mas há alternativas íntimas: desligar o celular à mesa, devolver à infância o direito ao brincar livre, ao corpo o direito ao descanso, à família o tempo de conversa. Não se trata de nostalgia, mas de sobrevivência cultural. Entre o prazer rápido e o convívio duradouro, há uma escolha. Entre a dopamina do clique e o silêncio de uma biblioteca, há uma decisão política e íntima.
O último capítulo ainda não foi escrito. Mas se o país insistir em entregar sua infância à dopamina barata dos cassinos de algoritmos viciantes e relegar seus velhos ao abandono, o que restará não será narrativa, mas ruína.
Uma criança que troca o brincar pela rolagem infinita e a memória pelo instante do feed tende a entrar em um proceso de escrever sua própria sentença de esquecimento.
No lugar de leitores, restarão usuários e no lugar de páginas, as telas. Entre a pressa que anestesia e o silêncio que já não encontra quem o escute, a escolha ainda existe e cada geração decide se deixará herança ou apenas resíduos digitais.