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Revolta da população chilena e a atenção para o Brasil
Photo Credit To Mariana Vilela
Revolta da população chilena e a atenção para o Brasil

Revolta da população chilena e a atenção para o Brasil

Crescimento do PIB invejável contra população endividada e alto índice de suicídio na velhice fazem refletir sobre o modelo de país que se deseja

Beatriz Soledad é filha da ditadura chilena. Sua história de vida está intrinsecamente ligada à violência do período, que fez com que seu pai, Manoel Simon Troncoso Vitoria, e sua mãe, Carmen Elizabeth Guerrero Tapia, corressem para buscar exílio no Brasil entre os anos 1977 e 1978.

“Apesar do Brasil também ter passado por uma ditadura no período, ainda era uma ditadura em que era possível de se viver”, conta Beatriz, terapeuta ocupacional da prefeitura de São Paulo, que apesar da pouca idade de nove anos naquela época, tem lembranças muito nítidas daquele momento marcante na sua vida e de sua família.

Entre algumas das memórias mais assustadoras que vivenciaram na cidade de Santiago, em um bairro de elite onde moravam, ela lembra de uma ocasião em que os militares chegaram à casa da família de forma brutal para interrogar o motivo de sua mãe não estar protestando contra o socialismo como as outras mulheres, que mandavam suas empregadas domésticas ‘baterem panela’ nas ruas contra o governo de Salvador Allende, presidente eleito democraticamente que governou o país de 1970 a 1973 até o golpe militar.

“Minha mãe mantinha-se firme nessa posição, pois era contra o governo militar e nós havíamos sentido que o modelo de Allende trouxe de benefício à nós e a toda população”, recorda. Mesmo assim, os livros, discos, e qualquer material que os ligasse ao socialismo eram queimados. “Também enterrávamos jóias e dólares, pois eles pegavam tudo”, conta.

“Muita gente desapareceu. Meu tio trabalhava na alfândega entre Argentina e Chile, e soubemos que ele foi pego e colocado num caminhão e levado para Piçagua, que foi transformado em um centro de tortura. Ele ficou seis meses por lá e nos disse que os corpos eram colocados um acima do outro de forma natural”, conta.

Na visão dela e de sua família, que acompanharam toda a transição do governo de Allende para a violência da ditadura de Pinochet e sentiram a passagem de um país com um viés socialista para um país ditatorial, as mudanças foram muito perceptíveis do sentimento da população com a igualdade social e qualidade de vida. “Nessa época, nós tínhamos saúde, educação e cultura, tudo de graça”, conta.

Quando o militarismo dava às cartas, a população ficou polarizada. Enquanto a família de Beatriz era pró-Allende, outra parte se mostrava descontente com a inflação e a economia do país.

À parte as preferências ideológicas, o golpe de Estado e o militarismo entrou junto com a ditadura considerada uma das mais sangrentas da história, que durou entre 1973 e 1990.

No que se refere à economia, foi no período de Augusto Pinochet onde se iniciou o modelo neoliberal e acentuou de forma mais contundente nos últimos anos, dando início às privatizações que hoje predominam no modelo econômico do Chile com o governo de Piñera.

Crescimento econômico x alto índice de suicídio na velhice

Assim como para Beatriz, para o comerciante Fernando Gerrero Maturana, 63, que montou um café recentemente no bairro nobre de Providencia, em Santiago, e já sente a queda nas vendas com as manifestações atuais, a revolta da população se explica porque as medidas neoliberais não conseguiram oferecer às pessoas as garantias prometidas.

Ele, que acompanhou todas as transformações desde o período, acredita que todos os governos pós-ditadura, incluindo o governo de Michelle Bachelet, do Partido Socialista, implantaram um crescimento muito desigual.

A contradição é que os números da economia do Chile impressionam e destoam dos demais países da América Latina. Três décadas depois da ditadura, o valor do PIB chileno quintuplicou, tornando-se o mais alto da América Latina – o do Brasil, em ritmo muito mais lento, pouco mais que dobrou.

Em 2018, segundo dados do Banco Mundial, o PIB brasileiro per capita bate em 15.153 dólares anuais, contra 23.960 dos chilenos.

O país adotou, entre as medidas econômicas durante o período dos últimos anos de Pinochet, o câmbio flutuante, que reduziu as tarifas aduaneiras e implantou uma tarifa de importação uniforme de 6% para todos os produtos e estimulou a entrada de capitais estrangeiros no país, influenciado pela “Universidade de Chicago”, nos Estados Unidos, onde lecionou Milton Friedman, Nobel de Economia e reconhecido economista liberal, mentor dos “Chicago boys” e a inspiração do ministro brasileiro Paulo Guedes.

Apesar do crescimento pujante, parece que os números não chegaram à maioria da população. A questão é que os salários da classe média e, muito pior, da classe pobre, não conseguem sustentar.

“Os empresários fizeram o país à sua medida, para que mais tranquilos e felizes pudessem estar. É o Chile dos grandes parques e centros comerciais. A gente pobre, mais da metade da população que ganha menos de um salário mínimo, estão sempre mal, e por este motivo estão lutando neste momento”, afirma o comerciante Fernando Guerrero.

Beatriz Soledad, que ainda tem família no Chile, acompanha a realidade do país e exemplifica com números. “Se grande parte da população ganha 600 mil pesos por mês e só a faculdade privada custa 400 mil pesos, como estudar? A escola é paga. A saúde é paga. A previdência também. As pessoas estão se endividando. É um modelo impossível de sustentar”, acredita.

No que se refere à previdência, no modelo chileno, todos os trabalhadores precisam contribuir pelo menos 20 anos com 10% do salário para se aposentar e não há contribuições patronais nem do governo. A questão é que, além da dificuldade de pagar a previdência, os idosos não conseguem se manter com a aposentadoria quando ela chega.

Não à toa é registrado o alto índice de suicídio na velhice no país, considerado o maior do continente e o segundo maior aumento do mundo, ficando atrás apenas da Coreia e à frente de Japão e Rússia. Entre 70 e 79 anos, está 50% acima da média nacional, atingindo 15.4/100 mil, e entre os maiores de 80 anos a taxa é 17.7/100 mil.

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Manifestações em frente ao Consulado do Chile

Constituição da ditadura

Com um cartaz na mão que dá a dimensão da crueldade que já ocorreu entre mortes, estupros e desaparecimentos nestes últimos protestos, Gonzalo Franetóvic, 28, sociólogo e professor universitário, que veio com sua namorada passar uma temporada no Brasil, protestava em frente ao consulado do Chile na Avenida Paulista.

Ele acrescenta que o maior problema da revolta na população começa pela Constituição atrasada, elaborada no período de Pinochet e que garante a liberdade para a aplicação integral do programa de liberação econômica e pouca garantia social.

Gonzalo compreende que a história do Chile tem uma realidade muito ruim para os jovens, em especial por essa legislação elaborada na época da ditadura. “A população jovem perdeu o medo contra o Estado. O primeiro desafio é mudar a Assembleia Constituinte, que não garante os básicos direitos humanos e possui um viés ditatorial e que contribui para a desigualdade da população”, conta, com o pesar de estar acompanhando o desaparecimento de alunos na universidade que leciona.

Sua namorada, Natália Ramires, 30, geógrafa e militante dos movimentos feministas em seu país, acredita que a realidade é ainda pior para as mulheres. “A garantia social é muito mais baixa que a dos homens e a violência contra a mulher é muito grande. Lutamos para que as leis sejam mais favoráveis à liberdade da mulher, como a liberação do aborto”, conta.

No que se refere à legalização do aborto, o Chile ainda era um dos poucos países do mundo onde o aborto era proibido em qualquer situação até o ano de 2016. Foi uma das amarras legais decretadas pela ditadura de Augusto Pinochet pouco antes de entregar o poder, em 1989.

Depois de 26 anos de democracia e dezenas de projetos de lei fracassados, o Governo de Michelle Bachelet conseguiu descriminalizar as três situações de aborto – perigo de vida para a mãe, má formação do feto e estupro.

Tanto Gonzalo quanto sua namorada Natalia acreditam que o engajamento da população irá repercutir na mudança do Plebiscito. “Estamos otimistas, mas sabemos que as mudanças vêm a longo prazo”, conta a geógrafa.

 

A convulsão social e a bolha das privatizações podem acontecer no Brasil?

Rodrigo Milan, 34 anos, sociólogo e pesquisador da área de urbanismo, que vive há cinco anos no Brasil, menciona que é preciso ter cuidado ao relacionar o modelo brasileiro com o chileno.

“Vejo que a sociedade no Chile é tão ou mais desigual que a sociedade no Brasil, porém acho complicado comparar. O Brasil tem seus próprios ritmos e seus acordos sociais. Tivemos 30 anos de abertura econômica no Chile, de forma que a elite chegou a um patamar de vida europeu mas a população mais pobre está endividada. Temos um aluguel caríssimo e temos que passar a comida no cartão. As pessoas não conseguem viver”.

Já a terapeuta ocupacional Beatriz Soledad, personagem que abre esta matéria e carrega na sua história a sombra da ditadura, acredita que o Brasil precisa, sim, ficar atento às ameaças das privatizações e à diminuição do cuidado às questões sociais que já vêm acontecendo no país.

Ela afirma que nunca havia sentido uma perda de recursos para a área da saúde como o que ocorre neste ano. “Nós perdemos bastante coisa. Eles já tiraram alguns atendimentos psicológicos, como para homossexuais e transexuais. Aos poucos, vão tirando remédio aqui, alguma coisinha ali. Nunca tinha visto estas mudanças de cuidado com a área como sinto que acontecem neste ano”.

Se considerarmos que o ministro da economia Paulo Guedes tem como inspiração o modelo chileno para a economia e para a seguridade social, é de se considerar que o país fique de olho aos acontecimentos.


 

Jornalista humanista, comunicadora e amante das artes. Meus textos em mariana.journoportfolio.com Instagram: @jornalistahumanista

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